Celina Brod

O dia que o mundo iria acabar, mas não acabou

Por Celina Brod
Mestre e doutoranda em Filosofia, Ética pela UFPel
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Esse texto começou em um ônibus, no trajeto que vai de Providence até Nova Iorque. Fui convidada para me hospedar no sofá de uma doutoranda bolivariana; são redes sociais que nascem dentro das redes virtuais. Um sofá para dormir e pernas para perambular é metade do caminho para conhecer um lugar. Em direção à cidade que nunca dorme, ao olhar a paisagem, me chamou a atenção os vastos cemitérios na beira da estrada. "A morte está por todos os lados", foi este o pensamento que me ocorreu. O contraste entre a minha expectativa com a cidade barulhenta e o silêncio do falecimento fez com que eu tentasse abanar aquelas ideias reorganizando meu corpo no assento.

Milhares de lápides com nomes e datas que marcavam o tempo de alguém sob a terra, não debaixo dela. "Teriam aquelas vidas sido belas ou sofridas?" "Será que eles viveram uma vida incrível?" Não adiantava, mesmo com a música dos fones de ouvido, a reflexão sobre o fim da linha não me abandonava. O ônibus em movimento aumentava a minha sensação de que aqueles mortos me faziam mais viva. Era como se eles pudessem cochichar: "Você, que ainda está aí, faz o que com essa vida que vai?". Com rapidez eu abandonava esse pensamento, ninguém quer a responsabilidade de fazer mortos felizes, muito menos a ansiedade de garantir uma vida vivida. Os mortos não são apenas lembretes do fim, mas um contraste gritante com aqueles que ainda vivem.

Era 31 de dezembro, logo estaríamos em 2023. Seria um novo ano para o mundo inteiro e para os brasileiros um novo presidente. "O Brasil não vai acabar dia 1º de janeiro", foram estas as últimas palavras de Jair Bolsonaro para aqueles que aguardavam algum sinal do seu líder. Essa foi a frase mais repetida na sua última live. Bolsonaro sabia que era preciso desencantar o estado de transe que seus seguidores mais convertidos estavam. Afinal, muitos receberam, antes e durante as eleições, imagens apocalípticas de um Brasil devastado pela ideologia comunista, arrastado para a miséria e o autoritarismo de um regime socialista. Morte, perda e destruição. As eleições teriam sido fraudulentas e somente uma ação do Messias poderia reverter o fim do mundo. Com o dia da posse chegando, as pessoas, que mantinham esperança em algum acontecimento extraordinário, sofreriam um grande abalo psicológico com a expectativa frustrada. Afinal, uma ação popular não aconteceu e o Exército não tomou qualquer medida golpista.

Lula empossado era a concretude que esfarelava a última ponta de ilusão que mantinha o grupo sobrevivente. "Ilusão é o cordão umbilical que une líderes e seguidores", escreve Lipman, uma pesquisadora sobre lideranças. Bolsonaro precisava entregar novas crenças, uma crença que simultaneamente justificasse sua saída do Brasil e que permitisse que seus fieis consertassem o desequilíbrio cognitivo entre uma profecia que não se realizou e a crença insistente na validade do seu líder. Na live, Bolsonaro desfez a imagem apocalíptica e empurrou a esperança de mudança para o futuro. Assim, as pessoas se sentiriam autorizadas a continuar crendo e conseguiriam justificar seus últimos comportamentos. A narrativa apocalíptica é comum em grupos de seguidores fanáticos, pois a ideia de morte engrandece os líderes que prometem salvar aqueles que nele acreditam.

O mundo não acabou, Lula subiu a rampa. Subiram com ele outras simbologias, cores, vozes e esperanças. Lula renasce das cinzas. Na imaginação de muitos ele simboliza o renascimento de uma verdadeira Phoenix. Para outros, Lula representa apenas um alívio democrático, por ser um governo que atua dentro de linhas reconhecíveis. Para os mais afetivos, que lhe amam desde o princípio, ele representa mais do que isso. Estes enxergam em seu líder carismático uma nova era, um milagre possível e praticamente infalível. Tomara que estes consigam resistir à tentação da cegueira acrítica, aquele comportamento semirreligioso de quem deposita respostas de vida em um homem meramente político.​

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